Daniel dos Anjos em ação pelo Ninh Binh, líder da liga do Vietnã (Foto: Divulgação Ninh Binh FC)
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Fábrica de farinha, Flamengo, Jorge Jesus, risco de vida e Vietnã: conheça Daniel dos Anjos

De garoto que trabalhava em uma fábrica de farinha em Boa Esperança, no interior do Espírito Santo, a jogador que fez carreira em Portugal e hoje brilha no Vietnã, Daniel dos Anjos tem uma trajetória marcada por desafios e superação.

Revelado na base do Figueirense e com passagem pelo Sub-20 do Flamengo, Daniel chegou ao Benfica B de forma surpreendente: a proposta inesperada chegou enquanto ele estava em um restaurante. Do outro lado do Atlântico, chegou a atuar pelo time principal sob o comando de Jorge Jesus, convivendo com a exigência, o aprendizado e carinho de um treinador icônico em gramados lusos e, sobretudo, brasileiros.

Entre altos e baixos, ele também enfrentou um grave problema cardíaco durante a pandemia que quase interrompeu sua carreira e o fez temer pela própria vida. Mas nada disso abalou a sua determinação. Após superar o trauma, Daniel encontrou estabilidade no futebol português, se tornou artilheiro e consolidou sua carreira profissional.

Hoje, no Ninh Binh, no Vietnã, ele escreve um novo capítulo com gols gols, assistências e liderança na tabela, enquanto se adapta a um país distante da sua terra natal e coleciona novas experiências dentro e fora de campo. Um começo meteórico em três partidas: balançou a rede duas vezes e deu passe para outros três. Nesta edição da série ‘Brasileiros pelo Mundo’, conheça a trajetória de um jogador que não desistiu de seus sonhos, coleciona histórias curiosas e mostra que talento, coragem e dedicação não têm fronteiras.

Daniel dos Anjos: do interior do Espírito Santo à base do Flamengo

Daniel dos Anjos nasceu em Boa Esperança, uma pequena cidade do interior do Espírito Santo, e cresceu cercado por desafios que iam muito além dos campos de futebol. Filho de uma família humilde, ele começou a jogar bola na rua com os amigos, despretensiosamente, sem imaginar que aquele passatempo, porém, se tornaria seu futuro. “No começo, era só uma brincadeira de criança. Só depois que entrei para o time da minha cidade é que comecei a levar a sério”, lembra.

Antes de se dedicar integralmente ao futebol, Daniel precisou conciliar estudos e trabalho, e buscou seu ganha pão em uma fábrica de farinha para ajudar a família.

“Quando eu tive a oportunidade de trabalhar na farinheira, não pensei duas vezes, porque ali, pra mim, era receber dinheiro imediato e ajudar em casa, e no futebol era a longo prazo. Então, a verdade é que acabei deixando o futebol de lado por um tempo e só trabalhava e estudava. Mas fico feliz também por esse trabalho na farinheira, foi uma experiência muito boa”, recorda.

“Mas depois meus pais me tiraram do trabalho para focar nos estudos e no futebol. Minha família sempre foi minha maior inspiração, especialmente meu avô, que acompanhou meu começo e faleceu em 2009”.

O talento de Daniel chamou atenção. Em 2012, ele deixou Boa Esperança e foi tentar o sonho no Paraná. Desembarcou no Atlético Paranaense, mas acabou não ficando. Logo em seguida, chegou ao Figueirense, onde passou quatro anos na base, estreou no profissional e começou a se destacar.

Daniel comemora gol em jogo do Sub-20 do Flamengo

O passo seguinte foi uma experiência marcante: o Flamengo, onde no Sub-20 treinou com grandes nomes do futebol brasileiro e observou de perto o dia a dia de jogadores que via na televisão desde criança. “Era um sonho estar no meio daqueles jogadores. Eu aprendia muito só observando”.

A passagem pelo Benfica que ficou na memória

O salto para a Europa veio de forma inesperada. Após rescindir contrato com o Flamengo, Daniel dos Anjos estava prestes a assinar com outro clube no Brasil quando uma ligação mudou completamente seu destino.

“Estávamos em um restaurante com meu empresário, quando de repente toca o telefone: o Benfica queria me contratar. Nós começamos a pular de alegria dentro do restaurante, ninguém entendia nada”, conta rindo.

Em poucos dias, então, o contrato de cinco anos com o Benfica B estava confirmado, dando início a uma aventura que mudaria sua carreira.

Daniel dos Anjos brilhou no Benfica B e foi promovido ao elenco principal pelas mãos de Jorge Jesus

A adaptação não foi imediata. Daniel precisou enfrentar o novo idioma, clima e estilo de jogo europeu, passando quase um ano se acostumando antes de ter oportunidades regulares em campo. Mas seu talento e dedicação logo chamaram atenção, e ele acabou ganhando espaço suficiente para atuar até no time principal, inclusive na Taça de Portugal, promovido a pedido do então comandante do time, o técnico Jorge Jesus.

“Ele é muito exigente, mas ao mesmo tempo um paizão, um grande treinador”, afirma o atacante.

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Tondela: superação e estabilidade

Em Portugal, Daniel dos Anjos enfrentou um dos momentos mais delicados da sua vida: uma miocardite pós-COVID (inflamação do músculo do coração), que o afastou dos campos por três meses.

“Foi um susto muito grande e até então os médicos não sabiam a evolução por conta do vírus. Nesse tempo, temi muito pela minha carreira e, em certos momentos, pela vida. Fiquei muito assustado porque se tratava de coração”, conta o goleador.

Foram meses de recuperação intensa, com acompanhamento psicológico semanal e apoio da família, fundamentais, segundo ele, para que mantivesse a calma e a confiança (veja mais abaixo na íntegra da entrevista).

O atacante brasileiro Daniel dos Anjos brilhou com a camisa do Tondela na Liga Portugal

Depois desse período, o atacante encontrou estabilidade no Tondela, clube da elite portuguesa onde viveu o ponto de virada de sua carreira. Lá, ele se consolidou como referência em campo, acumulou mais de uma centena de partidas e se tornou artilheiro, prova que a superação e a dedicação podem transformar adversidades em conquistas.

“O Tondela me abriu as portas depois desse problema. Sou grato ao clube por essa oportunidade, e também muito feliz, pois lá fiz 102 jogos, e não é fácil alcançar essa marca. Uma vez auriverde, para sempre auriverde”.

Essa fase não apenas reforçou sua resiliência física e mental, mas também preparou Daniel para encarar desafios ainda maiores: escrever um novo capítulo da carreira fora da Europa, em um país totalmente diferente — o Vietnã.

Um novo capítulo no Vietnã

Após oito anos na Europa, Daniel decidiu buscar um novo desafio no futebol. Hoje, ele atua pelo Ninh Binh, no Vietnã, onde inclusive já balançou as redes, eu assistências e é peça importante d time líder do campeonato nacional. “Eu já estava há oito anos em Portugal e falei para minha esposa que um dia iríamos sair da “zona de conforto”, conheceríamos um novo país. Aí veio a oportunidade do Vietnã, e financeiramente também pesou para essa decisão”, conta.

O futebol vietnamita tem atraído cada vez mais brasileiros — hoje são cerca de 40 atletas atuando no país. Para Daniel, a motivação vai além do financeiro:

“Acho que muitos pensam como eu, uma nova aventura. É um país bom de ser viver. Muitos têm uma visão errada do Vietnã, mas sério, estou gostando muito de estar aqui”.

A adaptação, segundo o jogador, foi rápida. Apesar do calor intenso e das diferenças culturais, ele se acostumou bem com a comida local e a rotina do clube. “No começo, sofri um pouco com o calor, mas depois, com o passar do tempo, foi de boa. A comida também é tranquila. Me adaptei rápido até (risos)”, afirma o artilheiro, autor de dois gols e três assistências.

O Ninh Binh lidera a liga vietnamita com 100% de aproveito e isso passa muito pelos pés e pela contribuição do brasileiro.

Dos Anjos

Para Daniel, os Anjos nunca estiveram apenas no sobrenome. Eles sempre foram uma presença constante em sua vida, especialmente os pais e o falecido avô, que acreditaram nele desde o início e o incentivaram a nunca desistir de seus sonhos.

Mesmo diante do maior desafio da sua vida — o problema cardíaco em Portugal — essa força protetora nunca o deixou sozinho, guiando cada passo rumo à recuperação. Entre fábricas de farinha, treinos no Flamengo, aventuras na Europa e agora no Vietnã, Daniel dos Anjos mostrou que coragem, talento e o apoio daqueles que acreditam em você podem transformar qualquer obstáculo em história de inspiração.

Daniel é a prova viva de que os verdadeiros “anjos” são aqueles que nos protegem, nos motivam e nos lembram de que sonhos podem ser alcançados, mesmo nos caminhos mais improváveis.

Na galeria, os Anjos de Daniel: a esposa Sabrina, o filho Lucca, a avó Thereza, a mães Sineia, o pai Zenado e o avô Aílton, sua grande inspiração (Fotos: Arquivo Pessoal)

Entrevista completa com Daniel dos Anjos

1 – Vai Pro Gol: Daniel, começando pelo aspecto pessoal, antes mesmo do início da sua carreira, nos conte, por favor, sobre sua infância e adolescência. Quando e como o futebol surgiu na sua vida e quem mais o inspirou/incentivou?
Daniel dos Anjos: Engraçado porque, até então, o futebol era só uma brincadeira de criança na rua. Comecei a jogar bola na rua de casa, lembro até que não tinha pretensão nenhuma do aquilo poderia dar. Fui pegando o gosto de jogar bola, na verdade, depois começou a ficar sério quando entrei para o time da minha cidade, para jogos e a Copa Gazetinha. E comecei de lateral (risos), depois fui para atacante e comecei a fazer gols, a gostar e amar ainda mais o futebol.

Entrando na parte da minha infância, foi mesclada de trabalho, escola e futebol. Naquela época, em alguns momentos eu priorizei trabalhar do que jogar futebol e estudar. Depois, meu pai e minha mãe me tiraram do trabalho para focar nos estudos e no futebol e deu certo (risos). A minha família foi minha e continua sendo a minha maior inspiração, porque eles realmente foram quem mais acreditaram que eu poderia jogar futebol profissionalmente e, em especial, o meu avô que acompanhava eu no começo e que partiu em 2009.

2 – Sabemos que você trabalhou em fábrica de farinha quando garoto. Foi lá em Boa Esperança-ES? E como foi pra você esse período, você conciliava o trabalho na fábrica com o sonho de se tornar jogador profissional?
Então, quando eu tive a oportunidade de trabalhar na farinheira, não pensei duas vezes, porque ali, pra mim, era pra receber dinheiro imediato e ajudar em casa, e no futebol era a longo prazo. Então, a verdade é que acabei deixando o futebol de lado por um tempo e só trabalhava e estudava. Mas fico feliz também por esse trabalho na farinheira, foi uma experiência muito boa.

3 – O primeiro clube de maior visibilidade em que você chegou foi o Figueirense, ainda na base. Depois, um gigante como o Flamengo, antes de ir para a Europa. Como foi o processo da sua chegada ao clube catarinense e, mais tarde, ao Rubro-Negro?
Eu tive minha primeira oportunidade em 2012, eu saí de Boa Esperança através do Regis, porque eu estava jogando no Nova Venécia e ele tinha o contato do Sávio (ex-jogador do Flamengo, Seleção Brasileira e Real Madrid). Então, ele disse pro Sávio pra me ajudar arrumar um teste. Aí fui pro Atlético Paranaense, fiz um mês de teste. Até então eu ficaria lá, mas chegou outros jogadores com mais bagagem do que eu e, infelizmente, eles me disseram que não podia ficar.

Depois, logo fui para Figueirense e em duas semanas de teste fui aprovado. Fiquei 4 anos, fiz toda minha base lá e também fiz minha estreia no profissional. Depois fui para Flamengo Sub-20, fiquei um ano. Foi uma grande experiência estar nesse grande clube, onde terminei muito bem o ano.

4 – Você chegou a conviver com grandes astros do Flamengo naquela época? Como foi esse contato? Você ainda mantém amizade com atletas que jogaram contigo no Fla?
Eu treinava algumas vezes no profissional, e era um sonho de criança estar no meio daqueles jogadores. Muitos você só via pela TV e estavam lá. A minha convivência maior era nos treinos mesmo, então eu observava muito e ficava muitas vezes viajando (risos).

5 – Como se deu a sua contratação pelo Benfica, um dos mais tradicionais da Europa? Mesmo na equipe B, você chegou a atuar no time comandado por Jorge Jesus na época. Como é trabalhar com ele?
Essa contratação foi louca, porque eu rescindi com o Flamengo e estava indo pra outro clube no Brasil. Eu estava em um restaurante com meu empresário, e de repente o telefone toca e diz: “não leva ele, vamos cobrir a proposta e trazer ele pro Benfica B”. Até então não acreditávamos muito, mas depois chegou no e-mail do meu empresário o contrato de cinco anos com o Benfica. Começamos a pular que nem loucos dentro do (risos), ninguém entendia nada.

Depois cheguei lá, levei um tempo para adaptação, praticamente um ano e joguei pouco, mas eles disseram que era só adaptação e no ano seguinte jogaria mais vezes. Aconteceu, acabei ganhando meu espaço com muito trabalho. Depois de alguns anos, Jorge (Jesus) me deu a oportunidade na Taça de Portugal. Ele é muito exigente, mas ao mesmo tempo um paizão, um grande treinador.

6 – Foi em Portugal também que você encarou um problema sério de saúde, uma miocardite após contrair COVID. Nos conte como foram esses momentos difíceis pra você. O que passava pela sua cabeça naqueles momentos? E, psicologicamente falando, quem mais te ajudou a superar esse problema e retomar a carreira?
Foi um susto muito grande, porque, no meu caso, eu tive a miocardite pós-COVID, e até então os médicos não sabiam a evolução por conta do vírus. Acabei ficando fora por três meses, sem fazer nenhum tipo de exercício. Nesse tempo, temi muito pela minha carreira e, em certos momentos, pela vida. Fiquei muito assustado porque se tratava de coração. Tive ajuda psicológica toda semana durante a recuperação e minha família foi importante também para que eu pudesse ficar tranquilo e voltar a jogar.

7 – Você passou a enxergar a vida, a sua vida, diferente depois dos problemas de saúde que encarou e superou?
Sim, eu já enxergava a vida diferente. Depois disso, comecei a enxergar ainda mais, então tudo serve de aprendizado.

8 – Em seguida, você se transferiu para o Tondela, onde foi artilheiro e, até hoje, o clube em que você mais atuou na carreira. O Tondela representa a superação e um ponto de virada na sua vida?
Sim, o Tondela me abriu as portas depois desse problema. Ainda estava na Primeira Liga. Sou grato ao clube por essa oportunidade, e também muito feliz, pois lá fiz 102 jogos, e não é fácil alcançar essa marca. Uma vez auriverde, para sempre auriverde!

9 – Hoje você está no Ninh Binh e chegou com tudo por aí (dois gols, assistência, time na liderança…). Porque você optou por jogar no Vietnã?
Por tudo que inclui o futebol, um novo ambiente. Eu já estava há oito anos em Portugal e falei para minha esposa que um dia iríamos sair da “zona de conforto”, conhecer um novo país. Aí veio a oportunidade do Vietnã, e financeiramente também pesou para essa decisão.

10 – Além disso, o futebol vietnamita tem atraído muitos brasileiros (hoje, são cerca de 40 atuando no país). Por quais motivos, na sua opinião?
Acho que muitos pensam como eu, uma nova aventura. O financeiro também pesa, e é um país bom de ser viver. Muitos têm uma visão errada do Vietnã, mas sério, estou gostando muito de estar aqui e do país em si.

11 – E como está a adaptação a um clube e uma cultura tão distintas da nossa, em um país do outro lado do mundo? Alguma história inusitada que você já viveu por aí?
Adaptação está boa, me adaptei rápido até (risos). No começo, sofri um pouco com o calor, mas depois, com o passar do tempo, foi de boa. A comida também é tranquila, você consegue comidas típicas que gostamos aqui, então está tranquilo.

12 – Por fim, quais sonhos esse cara do interior do Espírito Santo – que tem a carreira consolidada no futebol, mas que passou por muita coisa (trabalhou em fábrica de farinha, superou um grave problema de saúde…) – ainda alimenta dentro de você? Tanto pessoal como profissionalmente.
Meus sonhos, alguns já foram realizados, mas quero mais. Pessoalmente, conseguir mais patrimônio para ter uma vida tranquila. Agora tenho filho e a responsabilidade é maior, mas também pelo que sonhei ter, uma vida tranquila pós carreira. Profissionalmente, continuar jogando pelo menos até os 35, me cuidar e estar bem sempre para conseguir esses feitos. Estar em bons clubes nos países em que eu estiver e seguir firme na batalha para realizar.


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Fotos: Divulgação/Ninh Binh, Divulgação/Benfica, Divulgação/Tondela, Reprodução/Instagram

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